Desde 2017, com cortes da taxa Selic de 13% para 2% na pandemia, o mercado de ações brasileiro vivenciou um aumento na entrada de empresas via IPO. Esses cortes também proporcionaram uma maior facilidade de financiamento para diversas necessidades, como expansão operacional, alongamento de dívidas e reforço de capital de giro. Essa prática já era comum e rotineira nos mercados desenvolvidos, que vivem uma era de juros baixos há mais tempo, dada sua estabilidade e baixa inflação.
Porém, isso parece estar cada vez mais próximo de acabar. O fim da pandemia, soltando um elástico de demanda reprimida, a guerra no Leste Europeu entre Rússia e Ucrânia, que levou os preços das commodities a altas históricas, e as taxas de desemprego estavelmente baixas acarretaram uma inflação crescente e cada vez mais duradoura, contrariando posicionamentos iniciais do presidente do FED, Jerome Powell, que seria apenas temporária. O resultado de todo esse movimento parece ser apenas um: o fim de juros reais baixos ou negativos.
Taxa de juros baixa e os estímulos para a economia
As taxas básicas de juros em patamares baixos estimulam a economia de diversas formas. Assim, menores quantias são deixadas em rendimentos sem risco, pois o retorno é cada vez menor. Uma das principais consequências é a valorização excessiva de uma série de ativos, passando pelos imóveis e chegando no mercado acionário. Isso acontece por pura matemática: a precificação de ativos, praticada pelo mercado, é realizada por meio de fluxo de caixa trazido a valor presente.
Os ativos que geram retornos ao acionista ou mesmo aqueles que dependem de alguém comprando mais caro que o preço de aquisição passam por um estudo de potencial de crescimento ao longo dos anos, com um desconto de custo de capital. Esse custo representa uma “perda de valor” por abdicar de um ativo livre de risco (investimentos que rendem a taxa básica de juros) para investir em algum ativo com potencial de retorno. Tendo esse desconto presente no denominador da equação, quanto menor a taxa de juros, maior o Valor Presente, retornando uma precificação do ativo sobrevalorizada.
Um exemplo prático
Isso pode ser visto em evidência nos ativos do setor de tecnologia. Como possuem uma expectativa de crescimento acelerado no presente, com reinvestimentos de lucros, os investidores abdicam de retorno no curto prazo para um ganho maior no futuro. Isso acarreta um peso no Valuation mais distante, onde o custo de capital pesa mais. Assim, esse tipo de ativo fica ainda mais sobrevalorizado em uma era de juros baixos.
O que ocorreu foi uma facilidade de acesso a capital de investidores por parte de companhias pouco rentáveis ou até mesmo com operações deficitárias, apenas pelo fato de excesso de liquidez no mercado e falta de alternativas de investimentos com retornos satisfatórios. Assim, vimos uma onda de IPOs no mercado brasileiro desde 2019, principalmente de companhias de setores aquecidos, como saúde e tecnologia.
Excesso de liquidez
O excesso de liquidez promovido pelo FED, por meio de recompra de ativos e emissão de moeda, provocou o mesmo fenômeno no mercado americano. Ao distribuir cheques durante a pandemia para manter a economia aquecida e não diminuir a renda das famílias, possibilitou um fluxo de valores para o mercado acionário e de criptomoedas. Com esse movimento, o múltiplo de negociação das empresas mudou de patamar e vários fenômenos de “gamificação”.
Gamificação é o fenômeno apelidado em que investidores tratavam a compra e venda de ativos como um jogo de videogame – do mercado puderam ser vistos.
Indicadores de empresas para o mercado
Múltiplos de empresas são índices utilizados para comparação de preços de negociação de empresas, levando em consideração sempre seu preço de tela relacionado com algum valor de balanços de resultados. O principal é o índice Preço/Lucro, que compara quanto o mercado precifica a companhia relativamente ao seu lucro gerado.
Quanto maior a expectativa de crescimento da empresa, maior é esse múltiplo, porém há casos em que apenas o excesso de dinheiro no mercado eleva tais números, pois haverá mais pessoas comprando as ações, puxando o preço para cima. Os mercados globais viram, ao final de 2021, múltiplos irreais, precificando crescimentos não atingíveis durante anos.
A “gamificação” de ativos veio com a facilidade de acesso a corretoras e a difusão e criação de criptomoedas, em muitos casos como brincadeiras. Ativos com altas de mais de 300% no dia chamavam atenção de investidores que, com dinheiro disponível dado pelos governos, se aventuravam na brincadeira, a fim de lucrar de forma rápida. O resultado, em sua maioria, não era positivo.
O tech selloff
Ao menor sinal de uma inflação monetária mais persistente e o aumento da taxa de juros americana, o mercado sofreu um choque. O ano começou com uma grande queda das ações de empresas de tecnologia, com a Nasdaq chegando a cair mais de 20% em março. O movimento, apelidado de “tech selloff”, a grande venda de ações de tecnologia, evidenciou que o mercado estava sobrevalorizado, com expectativas de crescimento irreais e múltiplos extremamente esticados.
O custo de oportunidade de investimento em ativos de risco, traduzido em custo de capital para financiamentos, pode fazer com que os investidores migrem do mercado acionário para ativos livres de risco, reprecificando as empresas e alterando o patamar dos múltiplos de negociação. Companhias com operações mais arriscadas, que dependem de uma série de fatores positivos para prosperar, são as que mais sofrem nesse momento, pois tanto investidores como financiadores ficam mais céticos em emprestar dinheiro com uma necessidade de retorno maior.
As companhias listadas possuem duas formas de levantar recursos para se financiar: via emissão de ações ou emissão de dívidas. Quando o mercado está aquecido, com juros baixos e um fluxo forte, a precificação de suas ações está em alta. Tal realidade proporciona uma janela boa para a companhia vender suas ações em troca de valores. Isso vale para emissão de dívidas, pois os juros baixos tornam o custo da dívida baixo, fazendo com que a empresa pague menos ao longo do tempo para obtenção de fundos no presente.
Em uma era de juros mais altos, a primeira opção se torna inviável. Além de o mercado precificar os ativos em um patamar mais baixo, não há confiança de investidores em fazer novas apostas nas empresas de crescimento.
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Qual foi a solução?
A solução para as companhias que necessitam de fundos para manter suas operações rodando é a emissão de dívidas. Ou seja, captação de recursos de curto prazo com uma promessa de pagamento delas mais juros no futuro. O problema acaba virando uma bola de neve: sem uma operação enxuta, assertiva e com geração de caixa, as empresas precisam captar recursos a um custo muito elevado. Sem a capacidade de honrar estes custos de dívida, fazem novos financiamentos, a novas taxas, e assim por diante.
Cenário para os próximos anos: juros baixos?
Um cenário de mais juros e inflação pode tanto levar a uma série de falências dessas empresas fragilizadas quanto a uma onda de aquisições, já que esses negócios podem estar em má forma, mas ainda assim ter valor para as concorrentes. Empresas consolidadas e líderes, com saúde financeira robusta, têm vantagem. Elas evitam financiamento imediato e podem absorver companhias deficitárias incapazes de sobreviver isoladamente. Tudo vai depender do cenário dos próximos meses e anos, que segue dominado pela incerteza.
Reprecificação dos ativos
Mesmo com esse movimento de companhias maiores, o que fica e que o investidor pessoa física mais sente na pele é a reprecificação dos ativos. Quando há estímulos evidentes no mercado, falta de alternativas e um excesso de comentários difundidos na população, o risco de supervalorização e perdas de capital irreparáveis é muito alto. Investidores entram no mercado pois não há outro lugar a se investir para buscar algum tipo de retorno. Porém, eles possuem a mentalidade de curto prazo e a ganância de retornos imediatos.
Quando a alocação de ativos é deixada de lado, com o foco em aproveitar ativos da “moda”, sem estudos e sem levar em consideração a precificação, a tragédia é anunciada. É extremamente complicado prever quedas de mercado ou a precificação justa das ações, grandes gestores tentam isso diariamente e poucos obtêm sucesso. Com a subida das taxas de juros reais, globalmente, as expectativas de retornos não vão ser tão altas no futuro. É natural que haja um ajuste generalizado nos mercados.
Mudança estrutural
Uma mudança estrutural no mercado pode trazer danos financeiros permanentes. Isso ocorre porque um ajuste de múltiplos, perspectivas e confiança do mercado altera níveis de negociação. Esses níveis dificilmente retornam ao mesmo estágio de quando havia otimismo transbordando. O que mais podemos absorver de riscos sistemáticos concretizados são apenas aprendizados. Isso evidencia, portanto, que o mercado acionário possui muito mais incertezas que certezas. Também podemos afirmar que a aversão a risco impacta em uma magnitude muito maior que o otimismo e a confiança.
Howard Marks, famoso gestor dos fundos da Oaktree Capital e autor do livro The Most Important Thing, disse em suas cartas:
“No final das contas, as árvores não crescem até o céu e poucas coisas vão a zero”.
Dessa frase, podemos levar que a euforia, tendência de alta e crescimento contínuo do mercado podem não ser permanentes. Porém, quedas e correções podem ter uma reviravolta. A conclusão é saber onde e quem está investindo, seguir com convicção nos objetivos e sempre com segurança, sem euforia de mercado.